Após o tiro de largada, dois corações unidos percorrem a pista em busca da vitória. A prova de para-atletismo pode ser individual, mas dois corpos cruzam a linha de chegada como um só. As quatro pernas, cansadas com o desgaste da corrida, caminham no mesmo ritmo. O cordão de 30 cm que separava o contato dos velocistas é deixado de lado. A alegria, ou a decepção, é compartilhada pela dupla, agora, no abraço, com o atrito da pele. Nas competições de atletismo para deficientes visuais, o guia é mais que os olhos do atleta: ele tem a força da palavra que pode levá-lo à vitória.
Nas provas de atletismo para deficientes visuais com perda de visão total, o guia é imprescindível. Esses atletas se encaixam na categoria esportiva B1, quando a pessoa tem ausência total de percepção da luz, ou pouca percepção, mas sem capacidade para reconhecer a forma de uma mão em qualquer distância ou sentido. Na categoria B2, com até 5% de visão, o guia é optativo. Quando o corredor tem de 10% a 15% de visão, da categoria B3, não tem direito ao orientador. Essas medições são feitas com o melhor olho da pessoa e a correção possível dele. A letra “B” vem de Blind – Cego, em inglês – segundo a Blind Sport Association.
Nas competições, o guia serve como os olhos do atleta, posicionando-o e indicando o percurso à frente. Em outras modalidades também existe a presença desse profissional. No Lançamento, o guia orienta o atleta e no Salto, corre ao lado até o local do pulo, quando dá um sinal para o para-atleta. Nas provas de velocidade, a postura e o direcionamento da pista já são orientados logo no início pelo guia. Mas é durante a prova que a presença de um parceiro se mostra fundamental, não só pela visão, mas por dar apoio psicológico ao atleta. Palavras de incentivo são essenciais e podem dar a medalha de ouro ao velocista.
Maria José Ferreira Alves, a Zezé, foi uma das primeiras atletas paraolímpicas em provas de velocidade do país. Ela disputa a categoria T12 (B2), para atletas com baixa visão. Quando começou, corria sozinha. Representantes da seleção brasileira perceberam que ela saía muito de sua raia, o que fazia perder tempo. Naquela época, Ádria dos Santos disputava essa categoria. Chegando em segundo nas competições nacionais, Zezé chamou a atenção da equipe brasileira e recebeu o convite para a seleção. Em 1996, Gerson Knittel, guia de Ádria, foi indicado para orientar Zezé. Trabalhou com as duas até 2000, quando decidiram que Knittel deveria se focar em apenas uma atleta. Nas Paraolimpíadas de Sidney, Zezé disputou com outro guia, mas não teve o mesmo rendimento de Atlanta – quatro anos antes - , quando ganhou dois bronzes. Ficou em quarto lugar. Em 2001, Knittel voltou a guiar a velocista e já nas Paraolimpíadas de Atenas – 2004 – conseguiu duas medalhas com o terceiro lugar.
Nervosismo atrapalha Zezé nas competições. Knittel serve como calmante. Segundo a velocista, durante a prova, o guia traz segurança. “Ele é positivo e transfere isso pra mim”, explica. Por essa relação, a atleta se sente confiante em correr ao lado de Knittel. “Devo tudo a ele”, diz. Segundo a atleta, o guia compartilhou o sentimento de competitividade e fez com que ela se dedicasse muito nos treinos.
Duas medalhas de ouro e uma de bronze em jogos parapan-americanos, cinco bronzes em Paraolimpíadas. Apesar dos bons resultados, Zezé se sente frustrada pela falta de reconhecimento quando não se chega em primeiro lugar. A parceria laureada não trouxe a Knittel os méritos pelo trabalho feito no esporte. A velocista se entristece por nunca ter trazido um ouro nas Paraolimpíadas, o que traria a seu guia o reconhecimento que merece. “Ele foi o primeiro a fazer esse tipo de trabalho e ninguém fala dele”, diz Zezé.
Para se tornar bom guia, não basta enxergar: é necessário ser um atleta de ponta. Segundo Everaldo Brás Lúcio, professor de Educação Física e guia da AJIDEVI, o orientador precisa estar mais preparado que o próprio para-atleta. Em um primeiro instante, ambos treinam juntos. Depois, partem para treinos individuais. “O orientador treina o dobro”, diz Lúcio. Um exemplo da qualidade nos treinamentos dos guias é a velocidade que uma pessoa tem que alcançar para correr ao lado de Lucas Prado, cego mais rápido do mundo. Seu guia Justino Barbosa percorreu, ao seu lado, os 100 metros da pista de atletismo, na Paraolimpíada de Pequim, em 11s03. Se Barbosa terminasse a corrida dos 100 metros com esse tempo nas Olimpíadas de Atenas, em 1896, seria recordista olímpico, com 0,97 segundos a menos que o tempo de Tom, que bateu o recorde naquele ano.
Prado, hoje, treina com dois guias - além de Barbosa, Laécio Alves Martins. Mais que respeito, o novo guia conquistou a confiança de Prado. “Aprendemos que juntos podemos alcançar qualquer coisa, assim como um atleta com visão”, comenta. Essa parceria trouxe uma lição para o guia: “ele me ensinou que não existem dificuldades que não possam ser superadas”. Dificuldades que Martins terá, suando a camisa e buscando preparo físico suficiente para acompanhar Prado, que projeta correr os 100 metros em 10s.
A preparação feita pelos guias não serve apenas para o trabalho paraolímpico. Lúcio diz que os guias costumam participar de provas também como atletas. “Uma coisa não impede a outra”, explica. As competições não ocorrem no mesmo momento, o que facilita a dupla jornada de preparação.
Atualmente o guia não é tratado como atleta. Não existe nenhum incentivo para esse trabalho. Segundo Lúcio, por isso, há a grande dificuldade no para-atletismo em conseguir guias. O número desses profissionais é baixo. Hoje, para-atletas recebem a “bolsa atleta” do Ministério do Esporte para continuar no esporte. Existe a possibilidade de conseguir essa ajuda financeira também para os guias, que são voluntários. “Apenas os guias de atletas de ponta recebem algo”, explica. Chocolate e Barbosa, guias de Ádria e Prado, respectivamente, recebem auxílio dos patrocinadores, comenta Lúcio.
Longe das principais notícias do esporte e do reconhecimento pelo trabalho feito, Gerson Knittel, pioneiro como guia, acredita que agora é o momento para se aposentar. Knittel iniciou como atleta na empresa onde trabalhava em 1986, com 21 anos. No ano seguinte, foi convidado para guiar atletas com deficiências visuais. A primeira para-atleta com quem Knittel treinou foi Ádria. Com ela teve sua maior alegria no esporte, quando a dupla conquistou dois ouros e uma prata nas Paraolimpiadas de Sydney, em 2000. A maior decepção de Knittel foi nunca ter conseguido um ouro em Paraolimpíadas com Zezé. Ele sente que faltou alguma coisa, que poderiam ter chegado em primeiro lugar. “Ela tem muito talento”, completa.
*Matéria feita no primeiro semestre de 2009
3 comentários:
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